
O shoot'em up é um género que, à partida, pode parecer muito limitado na sua forma – afinal, o que fazemos além de disparar contra inimigos? Não tem os mesmos contornos de acção e de ambiente que os seus descendentes a três dimensões na primeira pessoa, raramente apresenta enredos densos e complexos e as escolhas que podemos fazer são reduzidas a um mínimo. Um formato de contornos apertados, sem dúvida, o que torna necessário investir, e bem, no conteúdo, e é aqui que um título como Ikaruga sobressai.
Quando pensamos nos géneros de jogos que se tornaram espécies raras a última década, o shoot'em up [sobretudo em 2D] vem imediatamente à memória, juntamente com os títulos de plataformas e com certos beat'em ups. Não é difícil de perceber porquê, nos dias de hoje uma jogabilidade puramente arcade e uma experiência de jogo intensa, mas curta, tornaram-se elementos pouco atractivos para o público, daí que criar e colocar no mercado um shoot'em up, ainda para mais em 2D, é um acto de coragem e, porque não, de rebeldia no século XXI.
E o que tem, então, Ikaruga para se destacar dos demais? Após chegar às salas de arcada japonesas em 2001, teve direito a uma conversão para Dreamcast no ano seguinte, sem que nenhuma das versões visse a luz do dia fora do Japão. Seria em 2003, pela mão da Atari [sob a égide da Infogrames] que Ikaruga iria receber um tratamento mais justo, com uma conversão para GameCube e um lançamento nos mercados norte-americano e Europeu. Vindo das mãos da Treasure, que conta já com um portefólio que tem tanto de venerável como de underground – e onde pontificam jogos como Gunstar Heroes, Dynamite Headdy, Radiant Silvergun e Sin&Punishment – Ikaruga consegue trazer algo de refrescante a um género onde já muito poucos têm interesse.Ao contrário da maioria dos seus congéneres, Ikaruga não se baseia apenas no poder de fogo em si ou no aumento das capacidades das nossas armas. Pelo contrário, Ikaruga consegue ter um ambiente de jogo digno dos célebresbullet curtain shoot'em ups japoneses mas nunca deixando o jogador totalmente solto e mantendo sempre um elemento táctico vital para a nossa sobrevivência. E como se obtém tudo isto? Ikaruga baseia-se num princípio muito simples – todos os elementos activos no jogo [ou seja, a nossa nave, os inimigos e os seus disparos] são baseados em duas polaridades e a forma como abordamos e inimigos e alteramos a polaridade do nosso veículo durante o jogo determina a nossa sobrevivência e a nossa pontuação. Um princípio simples de compreender mas difícil de aplicar, já que somos frequentemente bombardeados por disparos de ambas as polaridades vindos de vários pontos do écran, obrigando quem se encontra aos comandos a fazer um exercício veloz e delicado onde pontuação e sobrevivência entram em confronto directo – importa referir que um disparo contra um inimigo de polaridade oposta tem o dobro do impacto, mas um disparo de polaridade oposta àquela com que nos encontramos é mortal, enquanto que nos é permitido absorver disparos da mesma polaridade com o fim de carregar um laser de grande alcance.
Do início ao fim, Ikaruga baseia-se no equilíbrio de polaridades e neste exercício constante de evitar disparos da polaridade oposta, absorver disparos da mesma polaridade, tentar destruir inimigos na proporção certa de forma a maximizar a pontuação e ainda, convém não esquecer, evitar os obstáculos fixos. Apesar de curta [é possível terminar o jogo em menos de 30 minutos], a experiência é extenuante e o nível de exigência de cada capítulo parece aumentar exponencialmente em relação ao anterior. É possível que a maioria dos jogadores atinja uma autêntica barreira no terceiro capítulo, mas o que se segue é tão merecedor do nosso esforço como é martirizante para o nosso cérebro e para os nossos dedos.Não se tratando de um género onde a prioridade seja dada à realização gráfica, Ikaruga apresenta um aspecto visual bastante pragmático – cenários em 3D para uma jogabilidade em 2D e uma direcção artística muito mais próxima de um filme de ficção científica do que do aspecto de animação que caracteriza bastantes jogos deste género [como por exemplo, Radiant Silvergun, o chamado “antecessor espiritual” de Ikaruga]. Do ponto de vista sonoro, a margem para impressionar é igualmente curta, mas destacam-se as composições musicais que formam uma excelente simbiose com o ambiente de cada capítulo – mais uma vez, o terceiro capítulo destaca-se pela faixa com que nos presenteia, como se o que os nossos olhos não fosse já suficiente para nos deixar em estado de alerta máximo.
Conclusão
É impossível abordar Ikaruga sem referir o seu elevadíssimo nível de exigência. Se para jogadores com alguma experiência de shoot'em ups trata-se de um título difícil, os iniciados neste género de jogos vão encontrar bastantes dificuldades em conseguir avançar, com o custo de deixar Ikaruga para trás – algo que não deve ser feito, Ikaruga é um jogo que merece todo o investimento de tempo que lhe possamos dedicar. Embora a curta duração da experiência possa fazer o jogo parecer superficial, o desafio imposto pelas pontuações – afinal, não foram as pontuações elevadas a verdadeira essência dos vídeojogos durante muitos e muitos anos? - e a abordagem a que somos obrigados tornam Ikaruga num jogo pelo qual desenvolvemos um grande respeito e admiração, e que se reflecte na longevidade. Trata-se de uma verdadeira aberração...no bom sentido, mas ainda assim, uma aberração.
O melhor
- O esforço a que o jogo nos obriga, graças ao princípio das polaridades
- O desafio interminável das pontuações
O pior
- Algumas secções do jogo obrigam a um exercício de memorização repetitiva
- O nível de exigência afasta a maior parte dos jogadores
- A impossibilidade de jogar a versão europeia em 60Hz, ficando esta a perder quando comparada com as suas congéneres japonesa e norte-americana